quarta-feira, 3 de novembro de 2010

Meia volta

Como todo mundo, passei por grandes revezes na vida, mas, como boa brasileira, fui me adequando daqui e dali pra seguir inteira. O problema é que, muitas dessas coisas, empoeiram nossos sonhos. Comigo não foi diferente. Pelo menos até eu decidir a dar meia volta.

Depois de me dar conta de que perseguia alvos errados, peguei, ainda ofegante, os caminhos que tinha deixado para trás, num processo lento, dolorido, mas muito compensador. Comecei a fazer opções que me devolviam aquilo que antes era incogitável. Qualidade de vida, tranquilidade, paz de espírito e tempo, principalmente tempo, me mostraram que ser competente e fazer bem aquilo que nos propomos não vale a família, os bons momentos com amigos e, ao contrário do que possam imaginar, te tornam uma profissional mais humana. Então, devagarinho, fui encontrando meios de priorizar o simples e foi assim que as coisas que importam, enfim, começaram a tomar assento na minha vida.

Mas, até chegar aí, perdi muitas coisas. Convivi menos com gente a quem gostaria de ter me doado mais. Perdi tempo, o precioso tempo, com as pessoas que amo e comigo mesma. Me desgastei por nada. E, volta e meia ouvia aquele alerta interno: será que perdi também a chance de ser mãe, de ter minha família, será que fui tonta o suficiente para não perceber que caminhava para lugar algum?
Diferente da imagem que passo para muitos, quem me conhece muito bem sabe que uma das grandes realizações da minha vida era formar minha família – sonho que atropelei durante anos e anos, cega por falsas expectativas com relação à carreira e à profissão. Pouquíssimos sabem, entretanto, que por mais speed que eu seja, gosto mesmo é cuidar das coisas da casa, de cozinhar, preparar a mesa, fazer prazer para as pessoas que eu amo assando um bolo ou qualquer coisa assim.

Nos dias de hoje, não poderia me dedicar apenas a isso, mas já causei muito espanto por aí assumindo (reparem no verbo) que se pudesse criaria galinhas, plantaria hortas, passaria horas num jardim e finalizaria minhas tardes lendo livros, antes que chegasse a urgência boa de preparar o jantar da minha família. É tão ordinário, tão banal e, contraditoriamente, tão raro tudo isso que fica fácil compreender as incrédulas expressões das minhas amigas do século 21. Difícil foi admitir isso pra mim mesma. Pra mim, que corri tanto para o lado oposto.

Cheguei a pensar que eu não teria um filho ou que, se tivesse, ele seria fruto de planejamento ou de um desses tratamentos de fertilidade. Mas, pra minha grande felicidade, numa das curvas que fiz vers moi même, tive a chance de saber que vou ser mãe de um menino, de um bebê que chegou como quem não quer nada, filho de um amor tranquilo, maduro. Um menino que veio junto com a construção dessa palavra família, que recebeu demãos de tinta dourada esse ano e, mesmo deslocada do meu sonho idílico de galinha-horta-jardim, é minha razão de viver.

Agora mesmo, divagando sobre tudo isso, meu filho chutou minha barriga. A sensação é que não é ele, mas a realidade que me cutuca: ei, você vai ter um filho! Sempre que isso acontece, me dou conta de que o fato é tão, mas tão importante, que me cala, põe ponto. É como se fosse mesmo necessário muito silêncio e reflexão para entender como é que cabe tanto amor numa barriga, nas expectativas, no sonho, na emoção de imaginar o rostinho desse menino que me fará mãe.

E é como se, só por existir, esse bebê personificasse um ritual marcante do nosso casamento, quando o padre nos fez girar no sentido anti-horário, simbolizando nossa entrada no tempo de Deus, onde não são as nossas vontades que imperam, mas algo muito maior, que nos reduz a simples instrumentos do sublime.

Meu filho nascerá no fim de janeiro do ano que vem e se chamará João. O nome, de origem hebraica, significa Deus é gracioso ou Deus é bondoso. Estou certa de ninguém mais do que seu pai e eu temos razão para acreditar que, sim, Deus é bondoso!

quarta-feira, 14 de julho de 2010

Eita Pau Pereira!

E que ninguém se engane com minha aparente fragilidade.
Algo é mim é Paraíba, é masculino e MUITO MACHO, sim senhor!


sábado, 3 de julho de 2010

Que te pasha Brasil?

Tenho de confessar aqui, só para vocês: estou com inveja da Argentina! Detesto o Maradona, odeio a empáfia daquele povo e, mesmo sendo sul-americana e pensando racionalmente que deveria torcer por um time irmão, meu espírito não abre para eles. É tão grave que preferi torcer por Gana só porque a camisa do Uruguai tem as mesmas cores da Argentina.

Mas, depois de ver a Holanda nos derrotar, nos humilhar em campo, tive de admitir que gostaria que o Brasil tivesse aquele ar provocador, o futebol ousado (e bonito, tenho de dizer!) que os hermanos tem mostrado na Copa. Gostaria que nossos jogadores entrassem em campo como eles, vendo a partida ganha. Contra a Holanda, depois do segundo tempo, era visível no rosto dos brasileiros a derrota antecipada. Queria muito que NÓS tivéssemos a confiança que eles têm de desafiar o mundo e bater no peito dizendo que são os melhores. Nós não somos os melhores, infelizmente. Levamos um time mediano, fraco e sem a genialidade que se tornou nossa marca. Sei que esse mesmo time já venceu a Argentina uma porção de vezes no passado. Mas, não é de futebol apenas que eu estou falando, mas também de ATITUDE!

 A Argentina pode até perder hoje para a Alemanha (aliás, torço para que isso aconteça). Mas, se o Brasil tivesse a postura que eles tiveram, a vontade de vencer que eles têm, ah, eu perderia dez Copas com MUITO ORGULHO! Eu sabia que o Brasil não iria longe nesse campeonato. Mas, torci, arranquei os cabelos, fiquei ofegante, levantei da cadeira, esmurrei mesas, xinguei, bradei. Mas, a cada partida, ficava mais difícil acreditar. Excomungo, desde sempre, a Era Dunga. A teimosia pode ser burrice e esse técnico provou isso. Gostaria (MESMO) de ter de engolir o Dunga, de dizer "pôxa, que bom que eu estava errada", mas, eu juro, um dia ainda vou dar de cara com aquele gaúcho emproado e vou gritar com toda a força da minha raiva: TOMOU, PAPUDO?!!!!!

Depois desse desabafo, vou comer chucrute, que é pra dar sorte. Afinal, apesar de sentir inveja dos hermanos, vitória de brasileiro eliminado em Copa do Mundo é ver Argentino perder!  Fui!

quarta-feira, 2 de junho de 2010

Marco, um marco

No meu aniversário do ano passado, minha amiga Pat resolveu inventar moda e, ajudada pela minha sobrinha Lara e por sua filhinha Luísa, comemorou aquilo que deveria ser meu marco zero, meu recomeçar. Sempre achei os marcos importantes, encorajadores, estimulantes. Mas, não podia imaginar que aquele aniversário com bolo de sorvete representaria o início de uma época tão feliz em minha vida. Mal sabíamos, até então, que menos de dez dias depois de assoprar aquela vela em forma de zero, eu conheceria, justamente, o Marco.

Antes dele, mesmo com coisas interessantes acontecendo na minha vida o tempo todo, a impressão que eu tinha era de que nada, absolutamente nada, mudava. Alteravam nomes, amores, trabalhos, carros, cabelos, roupas, mas eu continuava a mesma, na mesma. Mas, o Marco chegou atendendo meu pedido de ter um amor feinho, feito aquele de Adélia Prado. Um amor simples, como são os amores de verdade. 

Chegou plantando beijos e carinhos, fazendo o que não dizia e, "igual fé, estava lá e pronto". Incontestável. Com uma simplicidade espantosa e confortadora, resolveu ficar. Pra sempre. Marco, o meu Marco Zero, me pediu em casamento na tarde do feriado do dia 24 de maio.

Passou quatro meses tentando achar um jeito romântico de me perguntar se eu gostaria de passar a vida ao seu lado mas, honrando seu jeito de ser, foi lá e fez: sem firulas, sem joelho no chão ou alianças caras. Tinha o olho brilhando de emoção, a mão levemente trêmula, mas firmeza ao falar do seu amor. Ele não sabia, mas nada podia ser mais 'feinho'.

Daqui a alguns poucos meses, vamos seguir nosso caminho juntos. E, a cada amanhecer, “plantar beijos de três cores ao redor da casa.”


Amor Feinho


Eu quero amor feinho.

Amor feinho não olha um pro outro.

Uma vez encontrado, é igual fé,

não teologa mais.

Duro de forte, o amor feinho é magro, doido por sexo

e filhos tem os quantos haja.

Tudo que não fala, faz.

Planta beijo de três cores ao redor da casa

e saudade roxa e branca,

da comum e da dobrada.

Amor feinho é bom porque não fica velho.

Cuida do essencial; o que brilha nos olhos é o que é:

eu sou homem você é mulher.

Amor feinho não tem ilusão,

o que ele tem é esperança:

eu TENHO UM amor feinho.

quarta-feira, 19 de maio de 2010

O florista

Minha mãe tinha nojo de dinheiro. Pegava nas notas com a pontinha dos dedos, como se fosse lixo, fazia careta e não perdia a oportunidade de dizer que aquilo era muito anti-higiênico. Com os cartões de débito, pegar em dinheiro é coisa cada vez mais rara. Pelo menos pra mim. O tal cartão mudou completamente meus hábitos. Dou preferência para os estabelecimentos que têm a maquininha e, muitas vezes, deixo de comprar coisas em feiras (onde o recurso já está bem difundido, aliás) ou pequenas lojas porque os comerciantes não aceitam o cartão de débito. Com isso, nem sempre me preocupo em passar no caixa eletrônico e descontar dinheiro.

No Dia das Mães, a caminho da casa dos avós de meu namorado, passo com ele num grande supermercado para que ele pudesse comprar flores para sua mãe, avó e tias. Por volta do meio dia de domingo, já não havia nada. Resolvemos, então, tentar uma floricultura perto de casa, na Avenida Assis Chateaubriand. Encomendamos as flores e, na hora de pagar, o rapaz nos informou que não aceitava cartão de débito ou crédito. Nos dispomos, de imediato, a voltar e descontar dinheiro num caixa eletrônico, mas, pra nossa surpresa, ouvimos o homem dizer:

- Nenhuma mãe vai ficar sem flor por causa disso! Passem aqui amanhã e paguem.

Nos oferecemos para deixar algum documento ou algo assim. Ele se recusou a receber e disse que confiava na gente.

Saí de lá com a sensação de viver numa sociedade diferente, onde as pessoas são tratadas como gente de bem. Coisa tão difícil hoje em dia apostar no melhor das pessoas. Me senti grata a ele mais pelo gesto do que pelas flores. Depois, fiquei pensando se é o fato de viver perto delas que faz aquele homem simples esquecer as verdades desse mundo e, com isso, se permitir floreá-las. Talvez ele seja como minha mãe, que também tinha o dedo verde e preferia sujá-lo com terra.


Ps.: Ontem, a apesar de não ser nenhum dia especial, recebi flores da mesma floricultura. Fiquei feliz de saber que meu namorado se tornou cliente. Hoje, ele volta lá novamente para pagar. O florista não tinha troco.


sexta-feira, 7 de maio de 2010

Mudando

Abro minha caixa de e-mail e acho lá uma cobrança do meu amigo Drubas, me acusando de deixar às moscas o Caneca da Nina. Tá certo, tem um tempinho que não passo por aqui. Mas, já ouviu aquele ditado (muito contemporâneo, aliás) “vida pessoal boa, vida virtual abandonada?” Pois é. A vida vai bem, obrigada, apesar das mudanças que aconteceram.


Tinha prometido a mim mesma que minhas férias, esperadas longamente e finalmente marcadas para abril, seriam para mim, para ficar em casa, curtir as coisas que eu amo, ter tempo para minhas comidinhas, meus artesanatos, caminhadas, amigos, leitura e, principalmente, para refletir sobre nada e sobre tudo. Queria me dar de presente tardes à-toa. Só. Nada de muitos planejamentos, correrias, viagens e tudo que pode ser muito bom, mas cansa.

Mas, nem tudo sai como a gente planeja... Uns diazinhos de férias e eis que surge uma nova proposta de trabalho, que me garantiria, justamente, mais tempo livre, uma vez que seria por meio período, apenas. Pensei, refleti e, com uma ajudinha de Lya Luft que diz em um texto que “mudar é viver”, mudei. E, voila, estou feliz!

Posso apostar com vocês que outras mudanças virão por aí. Algumas muito boas, outras nem tanto. E eu, que tenho pavor de aranha, cobra, sapo, barata e lagartixa, não terei medo delas. Nem de parecer mutante demais. Fazer escolhas é coisa de gente grande, dói, machuca, mas serve para mostrar a grande vantagem que é ter as rédeas de sua vida nas mãos. É isso. Tô de volta!

sábado, 20 de março de 2010

Vivendo-me

Não sei ao certo em que situação meu amigo Rimene usou pela primeira vez a expressão “Aline vive-se!” Nem sei se ele chegou a repeti-la. Também não tenho certeza se ele estava fazendo um elogio, mas, como é bem do meu feitio lenir, o fato é que a locução colou e, hoje, virou sinônimo de uma outra frase (que eu amo!) muita usada pelos belgas: Fais-toi plaisir (faça prazer a você mesmo).  Me lambuzo com isso!

Que os apressados não pensem que, por isso, eu passo em lojas de relógios caros ou roupas deslumbrantes, saco o cartão de crédito e compro o que vejo pela frente, apesar do meu saldo digno de jornalista. Não saio por aí fazendo o que me dá na telha, como uma adolescente que se acha imortal, assim como não faz meu estilo beber até cair ou coisas do gênero.

"Vivo-me" quando presto atenção em mim mesma e identifico o que me faz feliz. Ou sei que uma atitude vai respeitar os desejos do meu coração, apesar do que está marcado na agenda. Não tem nada a ver com preguiça, pois, em muitos casos, "viver-me" significa passar horas cozinhando para quatro ou cinco amigos – mesmo sabendo que é bem mais confortável combinar de encontrá-los num bar ou restaurante. "Vivo-me" no tempo em que me permito, me enxergo (e aos meus) como merecedores das coisas que considero boas.

"Viver-se" é gostar de sua própria companhia numa sexta à noite que não promete muito mais que um bom vinho, uma pizza light de supermercado ou um filme por acaso na tevê. Eu "vivo-me" quando me sou licença para dizer não a um monte de coisas no fim de semana só para ficar em casa. Ou o contrário. "Vivo-me" ao tomar um chá prestando atenção nele, no aroma, no gosto, na temperatura da caneca que aquece minhas mãos.

Sei que parece simples. Mas estou convencida de que há muita gente que não se faz prazer para dar prazer aos outros. Estou igualmente certa que isso não é altruísmo. Muitas vezes esse comportamento é, simplesmente, insegurança. Medo de desagradar. Talvez seja só uma desculpa pra reforçar minha tese, mas prefiro acreditar que se você está bem, a qualidade do que passa de você mesmo aos outros é melhor.

Quero, com isso, dizer apenas que é simples ter bons momentos e que o pouco basta, desde que saibamos curtir e valorizar os instantes que nos fazem bem. Clarice Lispector já havia dito que simplicidade dá muito trabalho. Estou de acordo. É uma atividade árdua, mas, uma vez lá, pode significar felicidade.

quarta-feira, 10 de março de 2010

Memória de alma

Não sou muito boa com datas. Ainda não aconteceu, mas sou o tipo de pessoa capaz de esquecer o próprio aniversário. Penso muito nas pessoas que eu amo, mas tenho uma nítida dificuldade de ir até elas ou de, na correria do meu dia, dar um telefonema, saber como está a prima operada, a amiga que eu adoro ou, enfim, dar a devida atenção aos meus. Descobri recentemente que isso se deve, em parte, ao Distúrbio do Déficit de Atenção (DDA), mas isso é outra história.


Toco no assunto para falar do que me ocorreu nas últimas semanas. Sonhei insistentemente com meu irmão, o Léo. Há três anos, ele morreu vítima de complicações da diabetes aos 24 anos. Nem preciso falar do golpe que foi perder o menino doce, genioso, engraçado, caridoso, simples. No dia 10 de março de 2007, o telefone tocou por volta das 9 horas e então eu soube que o Lelecotreco não estaria mais nas nossas vidas como sempre esteve.

Depois de alguns sonhos, onde ele sempre se fazia presente em conversas, aventuras ou em simples visões, percebi, claramente, que minha cabeça pode até falhar, mas minha alma tem memória boa. O espiritismo talvez explicasse isso como um desprendimento do corpo que, ao dormir, liberaria meu espírito para o contato com esses entes já em outros planos espirituais. Há quem defenda que a informação estava latente e que o sonho é uma forma do cérebro me alertar para a data importante.


As duas coisas podem ter acontecido. Mas, acho apenas que o amor nos liga e, hoje, acordada e consciente, vou fechar os olhos e pensar nele, em nós. Sei que entenderá que o amo e que é esse sentimento que nos torna irmãos, independente dos mundos que frequentamos.

terça-feira, 16 de fevereiro de 2010

Simples

Ontem, fomos ao clube com minha sobrinha, a Lara. Ela veio passar o Carnaval e, como sempre acontece quando ela está por perto, os dias ficam estranhamente arejados, leves. Arrumamos a tralha toda, que incluía sua filha - a boneca Bia -, e pegamos a estrada para que ela pudesse curtir um dia de sol e piscina. No meio do caminho, decidimos cantar uma música que ela adora, Fui ao Mercado, da Eliana. Aos risos, íamos todos acompanhando as peripécias da formiguinha que ataca pés, mãos e até o bumbum de quem se atreve a comprar itens bem rimados no mercado.


Não sei se já sentiram isso, mas, naquele momento, tive a certeza absoluta de que sou feliz. À noite, já em casa e com o corpo cansado de um dia bom, me ocorreu que somos felizes – fundamentalmente felizes. O que acontece muitas vezes é que permitimos que um pneu furado, um irmão irritado ou um chuveiro quebrado nos impeça de perceber isso. Tudo estava feliz, mas acontece alguma coisa e pronto... felicidade foooooi se embora!

Refletindo sobre isso, vi o quanto é estúpido esse raciocínio. A felicidade é. Presente do indicativo. É um estado de alma. O que acontece no meio do caminho não deve ter o poder de ofuscar essa consciência. Mesmo a morte – sempre tão devastadora, tão branca, tão engordurada – devia ser encarada como um parêntese desse momento.

É dilacerante perder alguém que a gente ama, a vida fica negra, mas, se juntando todas suas forças conseguir um pouco de discernimento, vai ver que as crianças estão sorrindo do mesmo jeito, que o cachorro tem fome, o vento ainda pode te refrescar a alma e que um ensopado é confortador. Vai compreender que as pessoas que ama estão nessas pequenas coisas. No fundo, ainda será feliz, apesar de. Porque, eu acredito, o segredo da vida, é ser simples. Entendê-la com a simplicidade de quem sabe que contra algumas coisas não é preciso lutar. É isso. Simples assim.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Velas na janela

Assim que fizer noite acenderei pequenas velinhas e as colocarei na janela. Vou reproduzir, ainda que solitariamente, uma tradição linda da minha infância. Eu morava numa cidadezinha pequena e charmosa e, todo dia 2 de fevereiro, assim que a noite caía, velas e candeeiros acesos eram dispostos nas janelas em homenagem a Nossa Senhora das Candeias ou Nossa Senhora da Luz. Me lembro de me debruçar no peitoril da janela pra ver a rua toda iluminada e, ainda que eu não soubesse que aquilo remontava à purificação da Virgem, acho que era, justamente pureza, aquela sensação que enchia meu coração.

Hoje eu sei que a festa começou há milhares de anos e lamento que ela seja rejeitada por boa parte da população. Na época de Moisés, acreditava-se que mulheres que davam à luz ficavam impuras e, por causa disso, deviam comparecer até 40 dias após o nascimento de seus filhos a um templo carregando oferendas como cordeiros e pombos. Quando Maria, mãe de Jesus, foi se purificar, Simeão teria dito que seu filho seria a luz dos povos, daí a origem da história.

Trombei de novo com a tradição de Nossa Senhora das Candeias quando morei na Europa. Por lá, a vela é dada a mulher mais jovem da casa, que representa a virgem. Vestida de branco e com uma grinalda de flores na cabeça, ela acorda as pessoas da família para comerem crepes. Com isso, os mais antigos pensavam garantir uma boa colheita de trigo. La Chandeleur é bem familiar e aprazível, ainda que a maioria das famílias se atenha simplesmente à feitura dos crepes.

Me incomoda viver numa cidade que ignora tradições e cuja religião é a novela das oito. Mas, como ladrar apenas não muda meu destino, hoje acenderei velas na janela.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

Sonhando com tempo

Fiz uma coisa diferente nesse domingo: acordei cedo. Pra quem acha que eu tinha um programa interessantíssimo, é bom deixar claro que saí da cama apenas para tomar um bom café da manhã e... ficar de papo pro ar! O fato é tão inusitado porque passo a semana inteira com o despertador programado para às 7h15 e, não raro, escolho dormir mais uns minutinhos a tomar café em casa.

Nas manhãs dos dias úteis, odeio aquela sensação de não ser dona do meu tempo, de negar ao meu corpo – quase sempre cansado e mais afeito as noites do que as manhãs – o merecido repouso. Então, antes mesmo de abrir os olhos, me torturo pensando porque não estudei para fazer alguma coisa que me permitisse ser a soberana única de minhas horas. E, todo dia, como quem tira sarro, meu cérebro manda a mesma mensagem: tá perdendo tempo, menininha! Vai se atrasar! Resignada, saio da cama como um leão despenteado e a sensação ruim só acaba no banho ou no momento em que bebo uma boa caneca de café.

Por tudo isso, no fim de semana, é sagrado acordar por mim mesma, só quando meu corpo decide. Mas, para minha surpresa, quando o despertador tocou nesse domingo, por volta das 8 horas (madrugada), apesar de não estar saltitante de alegria, acordei tranquila para preparar café, crumpets (uma espécie de rabanada salgada), bacon e suco de laranja. Comi (acreditem, isso importa pra mim) e pronto. Estava tudo certo. Eu teria tempo sobrando, item que, concluí, anda mais caro pra mim do que sono.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Artesão de amor e morte





Ela estava lá, no meio de um amontoado de armas espalhadas no asfalto para serem destruídas numa ação entre a Polícia e o Poder Judiciário. Feita com pedaços de madeira, cano de ferro e alumínio moldado, ela parecia pedir que adivinhassem sua história. O crime estava ali, esculpido por mãos habilidosas que, durante horas do ano de 1989, deixaram desenhados naquele revolver um coração (símbolo do amor), um peixe (símbolo dos cristãos) e, bem marcado, o nome de alguém que queria pecado assinado e reconhecido.


Seu nome que bem podia ser Severino, filho de Severo ou Divino. Um pescador nas horas vagas, um artesão, um lenhador. O assassino veio depois daqueles sorrisos, daqueles amores, cheiros e beijos. O mal foi esculpido pelo coração de um artista que apreciou, talvez, aquela flor no cabelo preto lustrado, o vestido rodado, florido, que o esperavam no fim de tarde, de tomando banho, lá no portão.

O perfume o embriagava e ele bebia suas mentiras doces, como quem bebe vinho de bacana. Talvez ela se chamasse Germana, Joana, Matilde. E devia rir, arreganhar todos seus dentes brancos, fazendo-o se sentir como se uma lamparina de querosene bom se acendesse dentro dele, que se entregava àquelas mãos de cera, que também alisavam Tonho, José ou seria Joaquim, seu amigo, seu vizinho, seu irmão.

Olhando pra aquela arma que, em meio uma tantas outras, esperava por um rolo compressor que aliviaria os arquivos do Judiciário, vi Falcão voltando mais cedo pra casa, seco de sede daquele corpo de fogo, daquela paixão que dava razão a seus dias. E ele, que pensava que ela o esperava ali o dia inteirinho, de pé no portão, ouviu gemidos vindos do fundo daquela casa branca com roseiras bem plantadas em dias de alegria.

Coração rasgando no peito, entrou escondido, acuado, já sabendo o que ia achar. Deu com sua mulher, sua "Maria", se aninhando com Tonho, João ou, quem sabe, José. E, ali mesmo, parado em meio às ferramentas que usava pra esculpir o rosto dela na peça mais linda que jamais pensou em criar, viu uma tragédia abusada entrar, descarada, sem pedir licença. Mais tonto em que nas noites onde enfiava seu nariz nos cabelos de sua dama, sentiu o ódio invadir, calmo, vingativo, absurdo, frio. Queria morte, queria vingança mas, pobre ou não, ele tinha nascido com a elegância natural dos homens destinados à arte.




Então, esquecido sob a sombra daquele rosto de barro no qual ele trabalhava todas as noites, se debruçou na arma que ele fez questão de fabricar com suas próprias mãos. Gravou no metal, com batidas caprichadas de um prego, um coração, um peixe e o nome que, a partir de agora, traria consigo: FALCÃO. E com esmero e capricho enfeitou sua libertação.