Muitas vezes eu me surpreendo com a minha capacidade de aceitar diferenças e compreender os mais desvairados atos das pessoas que me cercam. Mas, o fato é que pra mim é fácil aceitar, me adaptar e seguir adiante. Minha mãe já me dizia que minha maior inteligência era a adaptabilidade. Tava certa, a Delux! Mas, andei me perguntando esses dias de onde vem tanta facilidade para encarar as coisas mais absurdas com a maior naturalidade. Tive de gargalhar com o meu exercício de pensar nas pessoas com as quais convivi durante toda a vida: os normais eram exceção! Meu avô materno, por exemplo, colecionava loucos.
Morando numa cidadezinha minúscula e sem hospício, ele recolhia da rua os loucos que não tinham onde morar e que mendigavam aqui e ali. Um deles era a Guilé. Ela passava banha de porco na cabeça como se fosse remédio e enrolava tudo com pano, preso por quatro pequenos nós, por causa da “zoada” dentro da caixola. Nos momentos de ataques, ela saía pela casa gemendo, entrando e saindo num cômodo e outro da casa, como se isso pudesse despistar a tal zoada.
Baixinha, um tanto corcunda e já bem velhinha, Guilé era amada por todos nós por sua gargalhada estridente, mas isso não a imunizava das nossas artes e dos mil e um remédios que os netos-capetas do meu avô cismavam que poderiam curar o zunido dentro da sua cabeça. Ela tinha o nariz gigantesco e como aquele barulho me intrigava um bocado, imaginei que se colocasse um monte de perfume num daqueles frascos de plástico e pedisse pra Guilé cheirar forte ela ficaria curada. O problema é que quando ela cheirou beeeeeem profundo eu apertei a embalagem, o que fez jorrar perfume até o cérebro! Como meu remédio falhou, tive de aguentar a bronca.
O Joelice era um grandalhão, branco, de traços bonitos, mas sem capacidade até para se limpar. A tarefa cabia a minha avó, que, no balanço geral, era quem pagava o pato pelas atitudes ditadas pelo coraçãozão do meu avô. Joelice passava suas horas revirando os olhos, balançando a cabeça de um lado para o outro e cantando canções quase inaudíveis. Acho que era um anjo, meio fedido é bem verdade, mas um anjo bom.
O Wilton, filho da Guilé, que mora com a nossa família até hoje, tem um olho azul e um marrom e sua principal característica é o destempero na fala. Bastava a gente perguntar: o que foi Wilton? E ele soltava o que tinha em mente, numa confusão louca de palavras que normalmente começava por meeeeeeeer ou boooooooost. E isso bastava pra gente se matar de rir porque ele não parava nunca e ia soltando impropérios contra quem passasse pela sua cabeça.
A Mariquinha, que também ainda vive conosco, é o contrário. Falar pra ela é exercício difícil. Só pra se ter uma idéia, loucura, por exemplo, vira “nucura” na pronúncia dela. O negócio da Mariquinha, que deve estar aí com seus 67 anos, é ficar bonita e achar namorado. Pra isso, ela não mede esforços. Se ela te dá uma pimenta de presente, pega o lápis e papel e anota o pedido porque ela vai cobrar alguma coisa. E logo! Eu não enrolo e sempre que ganho abóboras, já pergunto logo o que ela quer. Normalmente são vestidos brilhosos, dourados, batom regateiro ou flor de plástico para colocar no cabelo. Sua melhor amiga, a Liquor, falava exatamente igual, era tão vaidosa quanto, com a diferença de que ela ria, ria, ria... até em velório.
Meu avô também não era o mais normal dos avôs. Alto, muito branco, olhos azuis profundos e bem barrigudo, ele usava camisas com furos feitos pelas faíscas que caíam do cachimbo que ele fumava sistematicamente. Mesmo quando não estava aceso. Desavergonhado, principalmente quando ia tomar banho de bica na fazenda, ele passava por quem quer que fosse nu, pelado, pelado, nu com a mão no bolso. Seu espírito era de um menino arteiro e ele nem pensava no politicamente correto antes de sacar um dos seus métodos infalíveis para educar seus netos, como dar um tiro de revolver pra cima, só pra ver a molecada correr da areia amontoada para uma reforma e sobre a qual uma dezena de crianças brincavam.
Outra vez, eu ainda nem sonhava em nascer, ele tirou de um andarilho uma criança que era maltratada diariamente. Acampados perto da casa dele, homem e menino viviam uma relação doentia marcada por surras e exploração, até o meu avô ameaçar o tal mendigo e oferecer abrigo para a criança, que viveu com ele até a vida adulta. E histórias como esta tem milhares, desse ser humano que não era nada, nada, politicamente correto, mas que tinha atitudes. Positivas, na minha avaliação.
Numa outra oportunidade, contarei sobre os loucos menos evidentes que sempre me cercaram, mas nem por isso menos adoráveis. Esta amostra é só pra me convencer mesmo que "nucura" pouca é bobagem!
13 comentários:
Êêêêh laraiááá... Já sei que sou uma das suas doidinhas preferidas !!!! Louca de tacar pedra mesmo. Mas você não é lá muito normalzinha não, hein?!
Se a senhoria tiver saído a seu avô, vou tratar de arranjar um atestado de insanidade mental logo, logo. Daí terei chances de ser abrigado?
Que história fantástica, Aline... De onde era o seu avô? Histórias de loucos me lembram minha infância, quando eu visitava meus avós, no interior, e convivia com os loucos da pequena cidade. Bjos!
poxa, que personagens, hein!?
já li um texto que escreveu sobre a sua mãe, depois sobre seu pai e agora sobre o seu avô, e cada vez mais me convenço de que você é abençoada pela familia que tem!
simplesmente adorei seu avô!
Tô com o atestado na mão. Inclusive o médico disse que tenho mesmo algo de louco. E agora? Tem lugar pra mim? Vai honrar a tradição da família?
Aline, fiquei preocupado depois que postei o comentário acima então, que fique claro: tenho todo respeito por você. Isso aqui não é assédio. Apenas brincadeira de um amigo que te admira um pouco - ou talvez muito - além do normal.
kkkkkk
Morri de rir!
Que texto bom e que vida doida!
Loucura pouca é bobagem, né amiga???Como diria Nando Reis " Na loucura dos meus dias quero ser são para tornar-me louco"!!Beijo
Neste elogio você deve acreditar e dele deve se orgulhar, afinal, só o melhor desejamos para nossos filhos. Se seu irmão deseja que sua sobrinha se pareça com você, é porque vê em você grandes qualidades. Não sei sei é o caso dele, mas não sou muito pródiga em elogios (acho que até devia ser mais), mas quando faço algum, é realmente sincero. :)
Adorei o conteúdo e leveza de suas narrações. O "Colecionador de Loucos" foi excelente! Bom saber dessa sua veia de blogueira.
Um abraço.
Richard Belle Branco
Nina, Erasmo de Rotterdam (louco de carteirinha) disse, em seu clássico "Elogio à Loucura", que assim como em nossas casas escondemos as jóias dentro de cofres e botamos o lixo nas calçadas, fazemos o mesmo com nosso juízo. Ocultamos nossas loucuras, delírios e esquisitices (que seriam nosso bem mais valioso) e jogamos ao público o mais vil do "politicamente correto", um ser quadrado que nem se mostra.
A visão da loucura mudou muito no decorrer da história. Teve seu período áureo em que quanto mais delírio mais perto dos deuses estavam, teve o tempo em que a inquisição os queimava por bruxaria, o tempo em que os guardava em cofres até a morte e agora estamos passando pelo movimento da luta antimanicomial, buscando uma visão mais humana e científica da loucura.
Eu também aprendi a não me surpreender com nada que seja humano. Convivi muito tempo com os internos do Instituto Batuíra (não! Eu não estava internado lá - claro que passava longe dos psiquiatras por precaução) e aprendi ainda mais a lidar com as diferenças.
Por exemplo, tem um louco que sempre que levanto pela manhã está no banheiro e fica me imitando. Vira e mexe me deparo com ele em outros lugares também. É alto, já foi magro, mas está engordando, usa óculos e fica com o cabelo despenteado. Tem uma moça que desliga o telefone dos outros pensando que é o Media Player do computador e um monte que sofre de juizite, um mal incurável muito comum em meu trabalho.
Por isto Nina, se um dia sua caneca te dizer "Bom dia Nina!", não se assuste! Dê um sorriso e diga "Bom diia Caneca" e seja feliz com ela.
"Um mal não é um mal para quem não o sente; Que te impota se todos te vaiam se tu mesmo te aplaudes? (Erasmo de Rotterdam).
Beijos do Paulo
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