quarta-feira, 7 de outubro de 2009

Meu grande amigo, meu pior namorado


Outro dia meu telefone toca bem cedo. Era o meu primeiro namorado me dizendo carinhosamente: “Aline, eu adoro aquelas suas historinhas”, se referindo aos posts que faço aqui no Caneca. Achei engraçado o interesse desse menino que foi tão importante na minha vida e que mesmo hoje, com toda distância imposta pela nossa adultice, ainda o é.


Ele foi um péssimo namorado! Pés-si-mo! Metia os pés pelas mãos numa frequência cardíaca. Eu tinha a impressão de que estava em teste 24 horas por dia. Mas, sejamos justos, também tinha a certeza de passar com distinção. Mas, isso é fato facilmente perdoável quando, pensando sobre isso, revejo aquelas duas crianças andando pelas ruas do Setor Sul.

Éramos isso. Só duas crianças que se conheciam desde sempre, mas que se enxergaram pela primeira vez numa madrugada do Dia dos Namorados do ano de 1989. A partir daí, eles se aventuraram, desembestados, na história de um amor adolescente, correspondido, mas vítima de muitas confusões, proibições, joguetes e infantilidades. Mas, sobretudo um amor construído com muito respeito e amizade.

Foi uma história gestada nas escadarias do Edifício Karina, no Setor Sul, onde as horas corriam fáceis, nos fazendo esquecer que éramos namorados. Ficávamos ali, sentados nos degraus discutindo um pouco de tudo, formando conceitos, falando de carros (que eu nunca conhecia), poesia, família, vestibular, e, raramente, construindo sonhos – o DNA dos futuros que, talvez por isso, não tivemos.

Nunca foi um namoro comum. Não tínhamos essas regras de nos falarmos ou nos vermos todos os dias. Mas, quando isso acontecia – fosse um telefonema, fosse uma visita – era intenso. Me lembro com carinho de uma vez que ele, então vestibulando de Medicina, me ligou às 8 da noite. Desliguei, rouca, às 2 da manhã, depois de ouvi-lo bronquear: “é por isso que não posso falar com você todo dia.” Também me lembro das férias em que, separados por centenas de quilômetros, ignorávamos o valor do interurbano e passávamos horas conversando, conversando, conversando...

Um dos nossos programas preferidos era sentar nas pracinhas do Setor Sul e ver a tarde correr. Também perdíamos boas horas fazendo caminhadas por aquelas ruazinhas tortas do bairro observando casas, falando de passantes, numa inocência que envergonharia aqueles que nos proibiam de ficar juntos.

Quando alguma coisa dava errada – o que não era difícil – meu sentimento tinha febre alta. E meu sofrimento vinha em cólicas. Só pra ninguém me chamar de injusta depois de tantas lembranças boas, conto apenas que uma vez, eu tentando ajeitar as coisas lá em casa, tentando convencer meus pais que ele era “o cara” - o que ele faz? - ele briga na “boate da cidade” por causa de uma outra menina. As explicações vieram aos borbotões, mas essas intempestividades eram típicas dele. Outra vez, ele entrou numa festa onde eu estava e fingiu que não me via, sei lá porquê. Mas, tudo isso passava na primeira gracinha que ele me fazia, ou às vezes na segunda, ou na terceira...

Apesar das decepções e dos desencontros, devo àquele rapaz maluquinho a consolidação dos valores que aprendi em casa. Tenho a certeza que ele contribuiu para minha formação moral, para que eu fosse mais segura de mim mesma, para que eu soubesse me valorizar, para que as facilidades e os ímpetos da adolescência não me corrompessem.

Até hoje, quando conheço uma pessoa, sinto falta da segurança que era namorar alguém que, como ele, me conhecia em gênero, número e grau. Que sabia de cor meus plurais, minha raiz, minha origem. E a mim não cabia mais do que ser apenas eu mesma. É certo que, pra ele, eu não poderia cantar aquela música do Kid Abelha, onde a Paula Toller diz “Eu tenho mil amigos, mas você foi meu melhor namorado”. Não. Isso ele não foi. Mas, ainda que as escadarias do Karina não soubessem, era uma profunda amizade que elas acobertavam. E o que é um namoradinho perto da sorte de se ter um grande amigo?

8 comentários:

Luisa Dias disse...

Ai, ai... viajei no tempo de novo e a culpada foi você. Também fui frequentadora das praças e das ruas do Setor Sul em um tempo não muito distante, em que amores juvenis perdoavam tudo e tinham assuntos para muitas horas. Agora conta, seu namorado era geminiano?

Unknown disse...

Nine,adorei!!! É maravilhoso quando um relacionamento se desfaz e a amizade se mantém. Você deixou claro que as lembranças da verdadeira amizade se sobrepoem as dos ex namorados. Isso é o que importa. Beijão

Vini disse...

assim, tive um, dois ou três. ou tiveram a mim, nem sei bem. mas acho que a primeira opção, até pra não me martirizar, não me vitimizar caso eu sinta, deles em mim, algum defeito herdado.

mas que há saudades e vibrações deles em cada tijolinho do alicerce erguido, há isso sim.

p.s.: grande amigo... melhor que namoro ótimo também. se algo vai errado no namoro, contamos com os amigos. se algo vai mal na amizade, contamos com outros amigos.

Patricia Papini disse...

Nine
Este foi o melhor texto que li desde que vc criou o Caneca. Adorei. Por tudo. História linda, embora ja a conhecesse. Linda, linda !

Patricia Papini disse...

Êpa, quero fazer uma retificação urgente-urgentíssima: o melhor texto, de longe, longe, longe, é o Lápis de Cor,porque eu não tinha lido ainda pois fui lendo descendo a barra de rolagem, ou seja, dos últimos para os primeiros. Maravilhoso. E, em minha humilde opinião, abraço tem cor chá de hortelã em dia frio, quando nossa garganta está arranhando. Descem macio, macio

Deire Assis disse...

"Não é nada, não." Aliás, poucas coisas ou gentes, ou conceitos, ou papeis são como os amigos. Muito poucos. Assim como a Lú, também peguei um trem aí pro passado... Aliás, temos comprado alguns bilhetes nestas estações ultimamente, não é não?

Bjo, linda!

Lisandro Nogueira disse...

Olá Aline,
passando por aqui e lendo seus textos.
Lisandro

Gilvane disse...

Ao ler esse seu post, veio-me apenas um conceito à mente: gratidão.
Que jóia rara é a gratidão!
Gostei muito.