quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Artesão de amor e morte





Ela estava lá, no meio de um amontoado de armas espalhadas no asfalto para serem destruídas numa ação entre a Polícia e o Poder Judiciário. Feita com pedaços de madeira, cano de ferro e alumínio moldado, ela parecia pedir que adivinhassem sua história. O crime estava ali, esculpido por mãos habilidosas que, durante horas do ano de 1989, deixaram desenhados naquele revolver um coração (símbolo do amor), um peixe (símbolo dos cristãos) e, bem marcado, o nome de alguém que queria pecado assinado e reconhecido.


Seu nome que bem podia ser Severino, filho de Severo ou Divino. Um pescador nas horas vagas, um artesão, um lenhador. O assassino veio depois daqueles sorrisos, daqueles amores, cheiros e beijos. O mal foi esculpido pelo coração de um artista que apreciou, talvez, aquela flor no cabelo preto lustrado, o vestido rodado, florido, que o esperavam no fim de tarde, de tomando banho, lá no portão.

O perfume o embriagava e ele bebia suas mentiras doces, como quem bebe vinho de bacana. Talvez ela se chamasse Germana, Joana, Matilde. E devia rir, arreganhar todos seus dentes brancos, fazendo-o se sentir como se uma lamparina de querosene bom se acendesse dentro dele, que se entregava àquelas mãos de cera, que também alisavam Tonho, José ou seria Joaquim, seu amigo, seu vizinho, seu irmão.

Olhando pra aquela arma que, em meio uma tantas outras, esperava por um rolo compressor que aliviaria os arquivos do Judiciário, vi Falcão voltando mais cedo pra casa, seco de sede daquele corpo de fogo, daquela paixão que dava razão a seus dias. E ele, que pensava que ela o esperava ali o dia inteirinho, de pé no portão, ouviu gemidos vindos do fundo daquela casa branca com roseiras bem plantadas em dias de alegria.

Coração rasgando no peito, entrou escondido, acuado, já sabendo o que ia achar. Deu com sua mulher, sua "Maria", se aninhando com Tonho, João ou, quem sabe, José. E, ali mesmo, parado em meio às ferramentas que usava pra esculpir o rosto dela na peça mais linda que jamais pensou em criar, viu uma tragédia abusada entrar, descarada, sem pedir licença. Mais tonto em que nas noites onde enfiava seu nariz nos cabelos de sua dama, sentiu o ódio invadir, calmo, vingativo, absurdo, frio. Queria morte, queria vingança mas, pobre ou não, ele tinha nascido com a elegância natural dos homens destinados à arte.




Então, esquecido sob a sombra daquele rosto de barro no qual ele trabalhava todas as noites, se debruçou na arma que ele fez questão de fabricar com suas próprias mãos. Gravou no metal, com batidas caprichadas de um prego, um coração, um peixe e o nome que, a partir de agora, traria consigo: FALCÃO. E com esmero e capricho enfeitou sua libertação.

3 comentários:

Marco A. Vigario disse...

Pu-ta mer-da! Lindo, Nina! Desde já um dos meus preferidos e uma das melhores coisas que li nos últimos tempos! Me lembrou a Eliane Brum de "A Vida que Ninguém Vê"!!

Luisa Dias disse...

Adorei... Você chegou em 2010 inspirada. Saudades de ti.

Renata Rosa disse...

Perfeito! Poesia pura, mto talento como sempre.
Bju, sdd