domingo, 21 de junho de 2009

Meu pai e a filha maldita


Era dele o beijo de boa noite, o agasalhar cuidadoso das cobertas, o olhar gentil na hora das broncas, o amor que transbordava incontrolavelmente quando a gente chorava, era ele quem fraquejava diante das nossas birras e vontades, era ele quem nos acordava pra ir pra escola fazendo ginástica para espantar a preguiça, quem preparava o café-com-leite quentinho, era dele o olhar orgulhoso diante de um boletim nem tanto, a voz que me assegurava quando eu ficava com medo do Zé Ramalho, era ele quem defendia meu caráter, meu gênio.


Devo a ele uma coleção de presentes verdes (por causa do Goiás e do Palmeiras), uma relação saudável com o material, a infância segura, o orgulho que sempre pude sentir de ser filha de homem exemplo de honestidade, de correção. Devo a ele uma mãe e uma família feliz. Meu pai sempre foi meu herói, até eu descobrir que ele era gente. Gente de bom coração, gente que erra e acerta, como eu.

Mas, uma das coisas mais bacanas que o meu pai fez por mim foi me ensinar a amar os livros, que ele comprava aos montes nos inspirando sonhos grandiosos na pequena biblioteca que tínhamos em casa. Quando completei 14 anos mais ou menos, ele me jogou no colo uma relíquia: A Filha Maldita, de Émile de Richebourg. Raro, datado de 1800 e alguma coisa, o livro conta a história de uma filha amaldiçoada pelo pai e vítima de uma série de tragédias pessoais. O detalhe é que o volume que continha o folhetim francês, de tão antigo, não tinha as últimas folhas. Não conseguimos saber o fim da história de Lucila, personagem principal do livro.

Algum tempo depois ele emprestou o volume e, como acontece sempre, não devolveram nunca mais. Meu pai, por sua vez, esqueceu a quem tinha emprestado, e a história se perdeu pra sempre. Desde então, passamos a procurar o livro pra comprar e nada. Feiras de livros, sebos, lojas e lojas... nada. Passamos mais de 20 anos procurando o volume, sem sucesso. Inscrita em mil sites da internet que vendem livros raros, no fim do mês de abril, eu encontrei Lucila em São Paulo, na casa de Ângela.

Foi emocionante pra mim botar os olhos naquelas páginas tão sonhadas, de escrita tão rebuscada, sentir aquele cheiro de novo e, com gosto, conferir a palavra fim na última página. Meu pai e eu poderíamos, enfim, saber como terminava aquela história, que durante tantos anos nos aproximou nesse objetivo comum de encontrá-la.

Então, coloquei os dois volumes numa caixa, enrolei com uma fita verde e mandei pro meu velho. Senti uma gratidão enorme por aquele papelão quadrado que guardava mais que aquelas páginas tão especiais pra nós, mas todo o amor de uma filha, esta, sim, bendita pela sorte do pai que tem.

11 comentários:

Deire Assis disse...

que história impressionante... e lindo o amor de vocês, filha e pai.

bjo, nina!

Anônimo disse...

História linda, tão linda que daria uma linda ficção.

Cássia disse...

Ops! Mandei o comentário anterior sem assinar.

Luisa Dias disse...

Linda a história... Meu pai também era um apaixonado por livros e guardo algumas destas relíquias na minha casa. Têm o cheiro dele. Bjos!

Luciene Cruz disse...

Sem palavras de novo!!!
Muita emoção!!!

Patrícia Papini disse...

Você se esqueceu de dizer que, de tanto amor, pegou uma alergia tresloucada lendo o velho livro antes de enviá-lo para seu pai. Esqueceu-se de dizer de sua euforia quando a mulher do sebo confirmou o achado. Esqueceu-se de dizer que seu amor pelo seu pai não tem medidas, nunca teve, e que ele, seu pai, também é muito bendito. E sou prova disso.

Nanny disse...

É a primeira vez que vi o seu blog,e adorei.Não pude deixar de ir passando as páginas,futricando em tudo...Até chegar no post em que você descreve as saudades que sente de sua mãe.Eu assim como você,tbm tenho esse laço com minha mãe,mas felizmente minha mãe ainda está entre nós.Mas sinto as mesmas saudades,moro em Portugal e ela aí em Goiânia.Também sou espírita,e cultuo esse sentimento de amor pelo próximo e pelo mundo.Obrigada por escrever palavras tão confortantes.

Gra Porto disse...

Que linda história! São nesses pequenos gestos que percebemos o amor de pai e filho né?

manu disse...

Nina,
Me emociona muito esse post,pq perdi meu pai muito cedo, qdo eu tinha 6 anos...
Vc sabe bem, é uma saudade que nunca passa...
E lendo vc, é como se fosse eu com meu pai em uma história que eu não vivi, dá pra entender?
Ele tbém amava livros, e eu herdei esse gosto tbém.
Isso me faz relembrar que o bem mais precioso que temos é a família!
Obrigada!
ah... vc vai adorar Pelotas! É uma cidade linda, histórica, alegre e com tradição em doces maravilhosos!

Beijos

criadora de orquídeas disse...

Você me arrasa, me estraçalha, me deixa atordoada. Sinto uma emoção tão grande em ler tudo que escreve porque eu sinto o quanto temos em comum. Ja lhe disse isso (não me lembro). Se não disse, digo agora: vc é um pedaço lindo de mim, com tanta história que eu já vivi, com tantas lembranças do que fui, do que sou...até do que serei. Diz tudo com tanta naturalidade que parece que até escuto sua voz. Você é um mistério na minha vida, que mexe com meu sentimento...Penso se todos tem um pouco do que vc tem, porque eu tenho muuuuuuuuuuito de vc...ou vc tem de mim, já que sou bemmmmmm mais vivida.
Nina, fico até receosa de me expor tanto assim. Sei que perdi as melhores horas dos meus últimos meses, silenciosa, pensando que estava respeitando seu desejo de ficar na sua...Mas tinha tanta saudade, tanta vontade de olhar nos seus olhos, de ouvir seu sorriso, de estar ao seu lado, só ouvindo vc falar, branda, terna, meiga. Mesmo dando esporro...que comigo nunca aconteceu...Graças a Deus...Mas pensava que vc poderia sentir medo desse meu amor por vc...Mas todo mundo te ama. Não sou diferente. É uma admiração, um orgulho. É como se você dissesse tudo que eu é que tinha que dizer. Parece que vc sou eu mais moderna, mas liberta, mais intelectual, mas a sua essência é puramente igual. Nossa vida tem muito em comum. E que droga...estou tão longe e não curti vc por tanto tempo desperdiçado!!!!
Não tem resgate. Mas vou ficar por aqui, lendo seus textos, me vendo em cada trecho, em cada detalhe...
Te amo muito. Quero um dia curtir uma semaninha, só umazinha, com vc, aqui na minha casa...
Te amo "no fundo do meu coração"..rsrsrs (É essa frase que vc não gosta)...?
Fique com Deus. Deite-se no colo dele e receba a mensagem que lhe enviei: "Silêncio", no dia do seu aniversário. Marilena (60 anos de idade, em breve).
Te amo.

Giovanna P. disse...

Quão delicada e amorosa a relação de você com seu adorável pai. Mamãe aos 87 anos continua a amar a leitura e sempre procura para ela os luvros, que na infância ela lia pra vovó:A toutinegra do Moinho, Mulheres de Bronze, A Filha Maldita o qual só encontrei o vol. 2, Telma a Princesa da Noruega, que ainda procuro . Essa turminha das décadas de 30 e 40 são ávidos leitores e com excelente formação.Beijos querida, amo a gratidão e o respeito aos nossos .